Journal De Bruxelles - Poluição luminosa ameaça observação do universo no deserto do Atacama

Poluição luminosa ameaça observação do universo no deserto do Atacama
Poluição luminosa ameaça observação do universo no deserto do Atacama / foto: RODRIGO ARANGUA - AFP

Poluição luminosa ameaça observação do universo no deserto do Atacama

Cai a noite no deserto do Atacama, no Chile, e quatro potentes telescópios começam a escrutinar os céus mais escuros do mundo do observatório Paranal, ameaçado pela potencial poluição luminosa de um megaprojeto de energia.

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Do observatório Paranal, situado no norte do país, como em "nenhum outro lugar do mundo vê-se com tanta clareza a Via Láctea (...) São os céus mais primitivos, os mais escuros, os de melhor qualidade", diz à AFP Itziar de Gregorio, astrônoma espanhola de 48 anos, do Observatório Europeu Austral (ESO).

A alguns quilômetros deste "santuário astronômico mundial", planeja-se construir uma enorme usina de energia limpa, no âmbito do ambicioso programa chileno para substituir as de origem fóssil até 2050.

Os cientistas se preocupam, no entanto, com a poluição luminosa da obra: o excesso de luz artificial, ao interferir na escuridão natural, causa um brilho que limita a visibilidade, por exemplo, de eclipses ou chuvas de meteoros, advertem.

Este fenômeno - vinculado ao aumento da iluminação pública e aos anúncios luminosos - também afeta os ciclos do sono nos humanos e desorienta as aves migratórias. Mesmo assim, passa despercebido.

"Se você vê uma torneira aberta, sente que está perdendo água, mas se vê um lugar muito iluminado a noite toda, pensa que não há contaminação", explica Daniela González, da Fundação Céus do Chile, uma ONG dedicada ao tema.

- Uma janela sem igual -

Com o pôr-do-sol, tem início a movimentação mais intensa em Paranal. Durante o dia, astrônomos e engenheiros processam dados, e à noite, sondam o infinito.

Distante mais de 100 km de Antofagasta, a cidade mais próxima, este centro científico quase não foi exposto à poluição luminosa.

No entanto, a mega-obra avaliada em US$ 10 bilhões (R$ 57,5 bilhões) - a cargo da companhia chilena AES Andes - preocupa o mundo científico chileno.

A futura usina de hidrogênio e amoníaco verde, que será erguida em uma área de 3.000 hectares, poderia fechar a "janela que temos para o universo" a partir do Chile, enfatiza de Gregorio.

Em recente carta pública, um grupo de 40 astrônomos, cientistas de outras áreas e inclusive poetas expressaram a mesma preocupação.

No entanto, a AES, em uma curta mensagem à imprensa, assegura que seu projeto incorpora "os mais altos padrões em questão luminosa" e que o mesmo segue a diretriz sobre o tema expedida pelo governo em outubro e que busca resguardar os principais pontos de observação.

Atualmente em avaliação ambiental, a usina funcionaria com energia eólica e fotovoltaica, segundo a empresa. Conforme a norma vigente, o processo para obter a licença operacional levaria de dois a três anos.

- Um instrumento colossal -

Paranal e AES divergem a respeito da localização do projeto. Para o primeiro, ficará a apenas 11 km do observatório, enquanto a companhia de energia o situa entre 20 km e 30 km.

Sem se opor à sua construção, os cientistas propõem a criação de uma zona de "exclusão luminosa", que significaria que a obra fosse construída a uma distância maior do observatório.

Paranal, com seus potentes dispositivos, é um ponto privilegiado para a observação astronômica, pois está situado no Atacama, o deserto mais árido do mundo, onde a umidade é baixa e, portanto, a nebulosidade é escassa. Do lado de fora, o vento sopra com força, mas apenas resfria o entorno desértico.

Daqui "pesquisamos praticamente qualquer fenômeno no espaço", como planetas e cometas perto da Terra; buracos negros ou vida fora do Sistema Solar, emociona-se Steffen Mieske, chefe de operações científicas de Paranal.

A 24 km, no monte Armazones, avança a construção do Telescópio Extremadamente Grande (ELT), o maior instrumento óptico do mundo, com 39 metros de diâmetro, que começará a operar em 2028.

Os cientistas também acreditam que o mega-projeto energético poderá interferir em sua operação.

Se chegar a aumentar a contaminação luminosa, poderia atrasar "a resposta que tanto almejamos (...) de se estamos ou não sozinhos no universo", alerta a astrônoma de Gregorio.

X.Maes--JdB